FecomercioSP recebe especialistas e representantes do Poder Público para analisar agenda de transformação digital e avanço regulatório da União Europeia sobre Big Techs
Por Wesley Damiani
O que esperar da bancada de inovação digital do Legislativo a partir de 2023? Diante da formação de um Congresso com característica mais nacionalista – com diversas inclinações ideológicas –, algumas iniciativas preocupantes para o setor privado tendem a ganhar uma grande proporção na agenda dos próximos anos, sem que ainda esteja claro qual o rumo que podem tomar. O termo “soberania digital” é uma delas, conforme apontou Thiago Camargo, diretor de Relações Públicas e Acesso a Mercados de Tecnologia da Prospectiva Public Affairs Latam, em reunião recente do Conselho de Economia Digital e Inovação da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP).
“Soberania digital é um dos temas que serão discutidos pelo Congresso. Existe uma força muito grande [em prol do debate] por parte da bancada conservadora e de bancadas mais à esquerda. A característica mais relevante deste novo Congresso é ser nacionalista – e este ponto deve fazer com que, em muitas discussões, esquerda e direita andem juntas”, ponderou o diretor.
Camargo enfatizou que a bancada de tecnologia da Câmara dos Deputados sofreu uma mudança de 27 parlamentares em sua composição nestas eleições, dos quais que apenas 14 mais ligados ao tema foram reeleitos.
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De modo geral, para ele, o grande risco que surge é a discussão não ser em torno da transição para uma economia digital – ou seja, uma “virada de chave” na economia brasileira –, mas apenas sobre temas ligados a isso, ocorrendo de forma “encaixotada”, o que pode representar um grande problema. Por isso, ele teme que assuntos importantes para o País sejam analisados dentro de “caixinhas”, em vez serem tratados como um “emaranhado” que conecta tudo na economia.
O diretor acredita que uma revisita a determinados pontos da Reforma Trabalhista seja uma das prioridades do próximo governo nos primeiros cem dias, mais especificamente, os trabalhos intermitente, o remoto e aquele ligados a aplicativos. O problema é que, no caso do trabalho por aplicativos, a discussão e as possíveis mudanças na legislação foquem muito os serviços de entrega e de transporte, mas como já estamos em um cenário de “plataformização” dos negócios, todos serão afetados, pontuou Camargo.
“O risco de se deixar a debate só em torno de ‘tecnologia’ é que todos veem o termo como algo que só atinge empresas do setor, mas alcança até mesmo aquele não está envolvido na discussão, como um médico que agenda suas consultas por alguma plataforma digital, por exemplo”, esclareceu. “A tecnologia não se trata mais de uma discussão de nicho. Em algum grau, todos serão atingidos – ou no que fazem atualmente ou em seus planos futuros”, complementou.
Segundo ele, os temas-chave para debate no Congresso em 2023 também são: fake news, conectividade, proteção de dados, Inteligência Artificial (IA) e governo digital.
Por fim, Camargo frisou que o governo, como prestador de serviço, é uma tendência que está se fortalecendo – o PIX, um serviço de infraestrutura bancária, é um exemplo disso. “A secretaria de governo digital entrou em vários serviços já estabelecidos com o recurso de identificação e autenticação de identidade – tanto que até instituições financeiras já utilizam o gov.br para este fim. Neste sentido, até mesmo prefeituras já ofertam estrutura própria de hospedagem, de serviços de taxi e delivery de restaurantes, se expandindo para cada vez mais áreas.” Para ele, o que deve vir com mais força é o governo ofertando serviços em nuvem; e o Banco Central (Bacen) pode vir a criar um superaplicativo na linha do que fazem os bancos digitais – com um acúmulo de dados que auxiliaria no trabalho da Receita Federal, por exemplo, mas que também poderia expandir o aproveitamento pelo setor privado de diversas facilidades em tecnologia.
A FecomercioSP tem um longo histórico de luta pela integração das frentes de transformação digital. Uma delas foi o Marco Legal das Startups, e agora, o Marco Legal de IA, tema que a Federação acompanha de perto e se empenha para garantir o ambiente mais oportuno aos negócios.
Big Techs na mira da legislação europeia
As autoridades antitruste em todo o mundo, inclusive o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, vêm demonstrando preocupação sobre o crescente alcance do poder de controle das grandes empresas de tecnologia sobre os mercados – particularmente, naqueles em que os empregos de dados e de IA são diferenciais competitivos relevantes, como redes sociais, marketplaces, sistemas operacionais, sistemas de carteiras digitais, entre outros. Cada vez mais, estas companhias vêm sendo tratadas como gatekeepers, isto é, como mantenedoras de barreiras de “entrada” e de “saída” nos produtos e serviços que já fazem parte da estrutura de negócio de outras empresas.
Atualmente, um banco digital só consegue ofertar o pagamento por aproximação por meio da carteira integrada no smartphone; ele não pode criar uma própria com este fim, por não ter acesso à tecnologia exclusiva. Da mesma forma, um negócio não pode realizar vendas internas em seu aplicativo sem arcar com as taxas da loja digital integrada no smartphone – e sem passar por um longo crivo de regras sobre a interação com o cliente. Estas lojas podem ser banidas a qualquer momento, ou ter suas vendas suspensas, caso falhem em cumprir a extensa lista de normas contratuais.
Na reunião do Conselho de Economia Digital e Inovação, Rony Vainzof, sócio da Opice Blum, Bruno e Vainzof Advogados e consultor da FecomercioSP, explicou a nova postura da União Europeia (UE) em torno do tema. “Após avanço na proteção de dados, eles criaram um novo ‘pacote’ que abarca a questão concorrencial às barreiras de entrada e saída, bem como o poder de moderação de comportamento nas plataformas – como combate ao discurso de ódio nas redes sociais, remoção de conteúdo e direcionamento de dados para o uso de publicidade.”
Vainzof reforçou que, de 1990 a aproximadamente 2010, foram afastadas as tentativas de interferência por parte do poder estatal sobre estas empresas, visando à promoção da inovação. “Muitas destas plataformas passaram a ser monopólios, ou quase isso. Eles podem estar se tornando barreiras de entradas a novos agentes.” Isso traz à tona o debate sobre o que representa o poder econômico de algumas empresas sobre todo um setor, que agora vai muito além de um simples aumento de preços.
Ele sinalizou que o Digital Markets Act (DMA) foi proposto no fim de 2020 pela Comissão Europeia como parte das medidas legislativas destinadas aos mercados digitais, focada em aumentar a competitividade e criar condições de entrada de novos agentes no setor. O ato impõe obrigações prévias às empresas definidas como gatekeepers, as Big Techs: garantia de interoperabilidade e de isonomia, vedação de práticas anticompetitivas (como favorecer o próprio serviço), barreiras à discriminação e às vendas casadas e limitação ao compartilhamento de dados pessoais entre os diversos serviços de uma mesma empresa. A norma recebeu aprovação do Conselho Europeu em julho de 2022 e se tornará aplicável a partir de abril de 2023.
Outra obrigação será a permissão que os vendedores em marketplaces, por exemplo, possam usar os serviços essenciais para vender produtos e serviços, independentemente de o pagamento ser realizado dentro ou fora da plataforma. “As mudanças podem beneficiar as empresas brasileiras que dependem destes serviços, sobretudo com a retirada de algumas barreiras de entrada. Outro benefício é a busca pela atuação uniforme, já que se trata de empresas globais. É muito provável que os padrões impostos pela UE sejam implementados globalmente”, concluiu Vainzof.
Andriei Gutierrez, coordenador do conselho da FecomercioSP, ponderou que o cuidado a se tomar em relação a estas ações da UE é que o impacto regulatório não “venha com uma força capaz de afetar a capacidade de inovação das empresas, assim como da liberdade economia de operar”.
Renovação da estratégia de inovação digital no Brasil
O evento também contou com a participação de Eliana Cardoso Emediato de Azambuja, coordenadora-geral de Transformação Digital do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI).
Ela explicou o andamento da renovação da estratégia brasileira de transformação digital – a segunda etapa de um importante compromisso que o País assumiu em 2018 e que, agora, avança até 2026. Um edital para a renovação foi aberto em 2021, recebendo 12 mil comentários e 1,6 mil sugestões ao documento. A iniciativa também gerou reuniões com vários grupos das indústrias e instituições importantes do País.
“Os eixos do plano permanecem os mesmos do primeiro edital, de 2018: uma economia baseada em dados, novos modelos de negócios, cidadania e governo, cidadania e acesso à tecnologia, fomento a pesquisa e inovação, ambiente digital confiável, capacitação profissional e cooperação internacional”, esclareceu. “Quanto à dimensão internacional, a ideia é fortalecer a liderança do Brasil nos fóruns globais em torno dos temas digitais, bem como a presença de empresas brasileiras no exterior.”
Sobre o governo digital, Eliana sinalizou que também se busca o aprimoramento das estratégias voltadas a isso, bem como integrá-las com as estratégias dos demais eixos. Este é um ponto pelo qual a FecomercioSP luta há anos, com resultados excelentes aos negócios, por exemplo o decreto que permite que documentos digitalizados tenham o mesmo efeito legal dos documentos originais.
“Também há uma intensificação da adequação das plataformas de governo à Lei Geral de Proteção de dados (LGPD). É importantíssimo que a gente dissemine a utilização da lei”, comentou.
O desafio, agora, é a continuidade do trabalho em meio à mudança de governo. “É um trabalho muito importante de cooperação envolvendo os setores público e privado e a academia. É um movimento que não tem volta, ou seja, ninguém deixa de participar da transformação digital que o mundo está vivendo”, complementou.