Presidente do maior TRT do Brasil critica enfraquecimento dos sindicatos e defende regra para aplicativos
Fernanda Brigatti
SÃO PAULO
Nem a pandemia, a crise econômica e a elevação do nível de desemprego fizeram o volume de processos trabalhistas apresentados às mais de 200 varas do trabalho de São Paulo bater o nível do período anterior à reforma trabalhista. O aumento projetado para o pós-pandemia, porém, já aparece nos números de ações distribuídas.
De janeiro a setembro de 2022, 259,9 mil novos processos foram apresentados às varas da capital, Guarulhos, Osasco, ABC e Baixada Santista. Em 2016, o volume foi de 356,1 mil no mesmo período.
A expectativa da nova presidente do TRT-2 (Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região), desembargadora Beatriz de Lima Pereira que assumiu há pouco mais de um mês, é que o ano termine com 330 mil novas ações apresentadas.
Para ela, porém, a Justiça do Trabalho enfrenta hoje um novo drama decorrente da combinação de pandemia e crise econômica. “[São] Pessoas que se lançaram no mercado, no empreendedorismo, sem a preparação necessária”, disse.
“Durante a pandemia, houve muita quebra [de empresas]. Hoje temos um volume muito grande de execuções que não estão prosperando porque estão encontrando esses ex-empreendedores em uma situação parecida com a do ex-empregado, sem liquidez, em execuções que se arrastam e nos preocupam”, afirmou, em entrevista à Folha.
“Acho que a perspectiva da reforma foi do lado empresarial, a partir de um discurso de que empregar no Brasil é muito caro e que existem muitos entraves para uma negociação direta entre empregador e empregado”, disse.
Essa discussão, para a presidente do TRT-2, é vazia. “Você não pode olhar para essa questão e partir do princípio de que são pessoas em situação de igualdade, de que elas podem discutir de maneira igual.”
Desembargadora há 20 anos e magistrada do trabalho desde 1986, coube a ela a relatoria da primeira decisão do tribunal de São Paulo sobre o reconhecimento de vínculo de um motorista de aplicativo. Ela foi favorável à obrigação da empresa registrar o trabalhador, decisão depois revertida no TST (Tribunal Superior do Trabalho).
Beatriz de Lima Pereira é desembargadora do trabalho em São Paulo – Karime Xavier/Folhapress
Para Beatriz Pereira, a atividade mediada pelas plataformas de tecnologia passa a impressão de não ser subordinada e de ser autônoma, o que, na avaliação dela, não corresponde à realidade dos trabalhadores. A regulamentação desse tipo de trabalho, diz, é urgente, mas precisa vir do Legislativo.
“Pessoalmente, apesar de defender a atuação do Poder Judiciário, e saber da importância das decisões, acho que é um assunto muito relevante para você deixar essa responsabilidade só no Poder Judiciário, sendo que a gente não tem um arcabouço legal. Tem que haver uma regulamentação de proteção para esses trabalhadores.”
Veja os principais trechos da entrevista concedida pela nova presidente do TRT-2 à Folha em seu gabinete, em São Paulo.
AS PROMESSAS DA REFORMA TRABALHISTA
Uma das coisas que se falava era de criar outras modalidades, como o contrato intermitente, e que isso iria trazer mais emprego. Não tenho dados de que tudo isso tenha, de fato, ocorrido. Aliás, acho que isso nem sequer está sendo utilizado em larga escala pelos empregados, porque não é produtivo. Você tem uma pessoa que não se vincula ao empreendimento.
Não se trata de ter uma visão romântica das relações de trabalho, mas as pessoas, o empresário e os empregados estão ali numa finalidade comum, que é uma prestação de serviço, a fabricação de um produto. Na medida em que as pessoas não se sentem pertencentes, as relações são mais difíceis.
PODER DE NEGOCIAÇÃO E ENFRAQUECIMENTO DOS SINDICATOS
A reforma trouxe um artigo com uma relação de temas que podem ser objeto de negociação sem observar o patamar mínimo da legislação, que é uma mudança radical das coisas. O negociado sempre foi para subir o patamar, e não descer. Essa é uma característica de tornar as coisas mais próximas das relações do direito civil, de que há igualdade, vamos sentar e negociar.
Mas o que nós estamos vendo hoje é um enfraquecimento dos sindicatos. Se gente olhar a história toda do sindicalismo do Brasil, diria que hoje ele não está no seu melhor momento e umas das situações que veio para agravar isso foi o fim da contribuição compulsória.
FIM DA CONTRIBUIÇÃO SINDICAL
Pessoalmente, nunca defendi as contribuições compulsórias, entendo que o ideal é que a contribuição seja espontânea, que o trabalhador busque o sindicato pelo papel que ele tem, pela atuação que ele tem.
Só que a gente vivia sob essa regra do imposto sindical há 80 anos e a partir de uma reforma que flexibiliza direitos, que de certa forma está prestigiando a negociação individual, vem falar que o negociado coletivamente pode prevalecer sobre a legislação, mas que sindicatos vão fazer isso?
Sindicatos que agora, além de estarem vivendo uma crise de representatividade, de identidade, estão vivendo uma crise econômica. Isso é um contrassenso da reforma.
PONTOS DA REFORMA ALTERADOS PELO STF (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL)
É natural que pontos fossem questionados, como o relacionado à Justiça gratuita, em que nem o beneficiário da Justiça gratuita deixou de ser condenado na chamada verba de sucumbência [valores que a parte vencida em um processo tem de pagar ao advogado da vencedora], que é um instituto do processo civil. Na Justiça do Trabalho, o princípio é o da gratuidade. Só havia previsão de pagamento de honorários quando o sindicato patrocinava a ação.
REDUÇÃO NO VOLUME DE PROCESSOS TRABALHISTAS
A previsão de condenação do beneficiário da Justiça gratuita foi um fator, diria que o principal aspecto processual que, em um primeiro momento, fez despencar os processos trabalhistas, o receio da condenação.
Já houve uma decisão no Supremo, que não excluiu completamente a possibilidade de condenação, mas minimizou. A meu juízo, o ideal era a gente retomar o status anterior. Não tem cabimento o beneficiário da Justiça gratuita perder o processo e sofrer uma execução para pagar o advogado da parte contrária.
MUDANÇAS PONTUAIS NA REFORMA
Acho que a gente pode, a depender de quem tiver interesse, mexer em questões pontuais que podem ser revistas sem uma nova reforma, apenas rever o que foi feito em 2017.
EFEITOS DA PANDEMIA SOBRE O JUDICIÁRIO
Trabalhadores vinham apontar que as empresas não estavam adotando medidas de proteção adequadas, tivemos problemas na área de saúde com esse tipo de reclamação sobre o fornecimento de equipamento de proteção.
Tivemos discussões sobre a natureza da doença, para pessoas que trabalham no ambiente hospitalar, por exemplo, sobre a possibilidade de caracterizar a contaminação pela Covid como doença do trabalho. Essas foram questões pontuais, que foram novidade durante a pandemia.
O QUE MAIS LEVA O TRABALHADOR À JUSTIÇA
Eu diria que a tônica dos processos habituais da Justiça do Trabalho se manteve [mesmo durante a pandemia], que são reclamações de verbas rescisórias e de horas extras, recebimento do Fundo de Garantia e aviso-prévio.
PRIORIDADES DO MANDATO
Hoje, a principal preocupação é criarmos condições para a retomada do nosso trabalho depois da pandemia. É uma questão que parece simples, mas não é. Com a pandemia surgiram outras formas de trabalho, com a realização dos atos processuais por videoconferência.
Agora, para todos voltarmos presencialmente, precisa ter toda uma tecnologia instalada. Em São Paulo, só na capital, na Barra Funda, nós temos 90 varas, fora zona sul e zona leste. Para você contemplar todas as possibilidades [do modelo híbrido], é necessário ter microfones e câmeras, e isso está sendo visto agora. Para você ter as 90 varas funcionando, tem que ter um sinal da internet para atender tudo isso.
RAIO-X
Beatriz de Lima Pereira
Formada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Tomou posse como juíza substituta do TRT-2 em 1986. Atuou em Cubatão, Poá e na capital. Em 2002, foi promovida a desembargadora. Presidia a 15ª Turma do TRT-2. Assumiu a presidência do tribunal no dia 3 de outubro para um mandato de dois anos.