Revista Crusoé – Entrevista José Pastore
O sociólogo José Pastore é um dos acadêmicos que mais entendem de mercado de trabalho no Brasil. Formado em ciências sociais e com mestrado na área, tornou-se professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, a USP, ainda em 1977. Nos anos seguintes, atuou na assessoria técnica do Ministério do Trabalho e na Organização Internacional do Trabalho, a OIT. Em 1989, obteve o doutorado honoris causa pela Universidade do Wisconsin, nos Estados Unidos. Aos 86 anos, ele divide seu tempo fazendo pesquisas em sua casa, na capital paulista, e dando aulas na Fundação Instituto de Administração da USP. Também é presidente o Conselho de Empregos e Relações do Trabalho da Federação do Comércio de São Paulo.
Pastore é um dos principais defensores da reforma trabalhista aprovada em 2017, durante o governo de Michel Temer. Tão logo o PT começou a defender a revogação do texto, ergueu a voz para esclarecer que a reforma não retirou nenhum direito existente na Constituição, apenas alguns benefícios antiquados que constavam na Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT. Sobre os clamores petistas para que a reforma seja revista, como fez o primeiro-ministro espanhol, o socialista Pedro Sánchez, Pastore recomenda cautela. “Os espanhóis querem transformar o emprego temporário e de pior qualidade em um emprego por prazo indeterminado, com salário alto. Querem impedir que as construtoras demitam um pedreiro que trabalhou em uma obra recém-acabada e o coloquem em outro canteiro”, diz. “Mas a lei não tem força, sozinha, para fazer essa transformação. Será preciso que as empresas tenham as condições econômicas para realizar isso.” Eis a entrevista:
Como estará o emprego no Brasil em outubro, mês da eleição?
Tenho feito algumas previsões condicionadas ao comportamento do coronavírus. Se a pandemia seguir obrigando as pessoas a se isolarem, com as empresas enfrentando um absenteísmo enorme, aí não dá para prever muita coisa. Mas, pelas conversas que tenho tido com epidemiologistas, acho que o vírus vai dar sossego a partir de março. Se isso acontecer, teremos em 2022 um panorama bem melhor que o de 2021. Algumas coisas já foram contratadas e terão de acontecer de qualquer jeito. O Brasil fez várias concessões de portos, aeroportos, estradas e sistemas de tecnologia 5G. Todas essas obras embutem compromissos para ampliar e modernizar a infraestrutura existente. Algumas obras de construção civil e construção pesada já começaram, o que deve melhorar os índices de emprego. Como estamos em ano eleitoral, várias obras federais que estavam paradas passaram a ser tocadas a pleno vapor, como casas populares, barragens, diques e sistemas de transposição de água. Além disso, os cofres dos estados e dos municípios estão lotados. Governadores e prefeitos estão com um superávit incrível e estão tocando construindo e reformando escolas, foros, hidrovias e hospitais. O agronegócio e o setor de mineração estão indo muito bem, com as exportações seguindo fortes. Nas cidades rurais, o agronegócio gera muitos empregos em seu entorno, em comércio, serviços, educação e segurança. Por fim, os programas de transferência de renda como o Auxílio Brasil devem melhorar o consumo, o que também contribui para gerar empregos.
Qual será a taxa de desemprego no final do ano?
Se não tivermos outra variante atrapalhando minhas previsões, podemos pensar numa taxa de 10,5% ou 11%. Historicamente, o Brasil tem enfrentado um problema sério de desemprego, em torno de 7% a 8%. São taxas altas. Temos muita gente precisando de renda. O desafio não é que a população está crescendo, mas que o emprego está diminuindo. A economia brasileira está encolhendo. A previsão deste ano, na melhor das hipóteses, é de um aumento de 0,5% do PIB. Isso é ridículo, não dá para gerar emprego com a quantidade e a qualidade que os brasileiros precisam.
Os empregos que serão criados até o final do ano são piores do que aqueles que existiam no passado?
O principal problema é que temos um alto índice de informalidade, na casa de 30%. Com a pandemia, muitas empresas demitiram pessoal. As firmas só voltarão a contratar novamente, de maneira formal, se sentirem que a demanda por bens e serviços ganhou firmeza. Não chegamos a esse ponto ainda. Por essa razão, as pessoas ainda têm de se virar na informalidade. Vendem pastel na rua, trabalham de biscateiro, consertam televisão, pintam uma casa, fazem uma obra clandestina. É esse o Brasil que conhecemos.
O PT tem dito que a reforma trabalhista retirou direitos dos trabalhadores. Essa crítica faz sentido?
A reforma trabalhista de 2017 manteve todos os direitos dos trabalhadores que estão na Constituição, sem exceção. Além disso, preservou quase todos os direitos que estão na Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT. Apenas um ou outro direito antiquado da CLT foi revogado. Havia, por exemplo, o artigo 384, segundo o qual as mulheres tinham de descansar por 15 minutos antes de iniciar uma hora extra. Esse dispositivo só fazia sentido na década de 1940, quando as mulheres carregavam sacos nas costas, faziam serviços pesados. Isso agora seria impraticável. Imagine uma enfermeira tendo de parar por 15 minutos no meio de uma transfusão de sangue de um paciente. A reforma trabalhista também revogou o artigo 792, que dizia que a mulher casada precisava de autorização do marido para entrar na Justiça do Trabalho. Era outro absurdo. O que a reforma fez, de fato, foi permitir que empregados e empregadores possam negociar o que quiserem em uma lista de 15 direitos. Se eles chegam a um acordo, então isso se sobrepõe à lei. Caso contrário, tudo continua como antes. Teve empresa em que os trabalhadores diminuíram a hora de almoço em 15 minutos, para poderem ir para casa 15 minutos mais cedo. Mas a CLT também estabelece que outros 30 direitos são inegociáveis. Esses, o patrão deve cumprir de qualquer maneira.
Outra crítica do PT é que a reforma trabalhista não gerou empregos.
Nenhuma lei tem força para gerar empregos. Se fosse assim, todo governante, assim que empossado, mandaria ao Congresso um projeto de lei extinguindo o desemprego. O que gera postos de trabalho é investimento e crescimento econômico. O Brasil tem dificuldade de criar vagas porque passou por uma sucessão de problemas, como várias recessões, períodos de inflação alta, o desastre em Brumadinho, em Mariana, a pandemia.
A lei da terceirização contribuiu para precarizar o trabalho?
É importante falar sobre isso. No início de 2017, foi aprovada uma lei da terceirização, que tinha alguns defeitos. Mas a reforma trabalhista, que chegou em julho daquele ano, corrigiu suas falhas. A reforma estabeleceu que uma empresa que terceiriza uma função deve prover aos contratados da firma terceirizada transporte, assistência médica, refeição, treinamento e instalações sanitárias. O trabalhador terceirizado ganhou vários direitos e proteções que antes não existiam. Com a reforma, a terceirização tornou-se um processo muito mais humano e civilizado.
O PT tem usado o decreto de Pedro Sánchez, primeiro-ministro espanhol, como um exemplo a ser seguido. A ideia dele é revogar parte das reformas trabalhistas de 2010 e 2012. Há realmente algo que possa servir de inspiração ao Brasil?
A situação dos dois países é diferente. A Espanha fez duas reformas trabalhistas para responder à crise financeira mundial, de 2008 e 2009. Naqueles anos, os espanhóis perceberam que não teriam como dar empregos para todos e criaram várias modalidades de trabalho picadinho: por dia, por obra, por tarefa. Ao fracionar tudo, os trabalhadores perderam algumas proteções. Esse não é o caso do Brasil, onde os direitos foram protegidos nas modalidades como o trabalho intermitente ou de tempo parcial. Agora, os espanhóis querem transformar o emprego temporário e de pior qualidade em um emprego por prazo indeterminado, com salário alto. Querem impedir que as construtoras demitam um pedreiro que trabalhou em uma obra recém-acabada e o coloquem em outro canteiro. Mas a lei não tem força, sozinha, para fazer essa transformação. Será preciso que as empresas tenham as condições econômicas para realizar isso. Esse será um desafio grande para as companhias espanholas. Para os brasileiros, o melhor seria aguardar para ver se o decreto espanhol será aprovado pelo Congresso e, então, esperar mais dois, três ou quatro anos para ver se a lei vingará.
Uma suspeita é a de que o PT quer revogar a reforma trabalhista para aumentar o poder dos sindicatos, que são sua base de apoio. O decreto do Pedro Sánchez fez algo parecido?
Há um artigo que tenta reverter a situação criada pelas reformas anteriores, de 2010 e 2012. O decreto quer que as convenções coletivas, que são comandadas pelos sindicatos e abrangem toda uma categoria, como a dos bancários ou a dos metalúrgicos, prevaleçam sobre os acordos selados entre as diferentes empresas e seus funcionários.
Qual tem sido o impacto da reforma trabalhista brasileira nos sindicatos?
Nossa reforma diz que os acordos entre empregados e empregadores prevalecem sobre as convenções, assim como as reformas espanholas de 2010 e 2012. É algo que faz todo sentido e que tem gerado uma revolução. Nas antigas convenções, os sindicatos costuravam acordos sobre benefícios para toda uma categoria. Mas, na prática, a heterogeneidade da indústria é tão grande, que às vezes um direito não podia ser aplicado a determinadas empresas ou certas camadas de trabalhadores. O que vale para uma montadora de veículos pode ser inadequado para uma fábrica de parafuso de fundo de quintal. Muitas companhias com menos recursos não tinham como cumprir com as exigências das convenções e colocavam seus empregados na informalidade, sem benefício algum. Como agora tudo é feito caso a caso, as negociações se tornaram mais realistas.
E essas negociações têm sido produtivas?
Pelo que estou acompanhando, os trabalhadores estão gostando disso. Eles estão conseguindo colocar mais gente com contratos formais, com todas as proteções. Há uma percepção clara de que as negociações trazem ganhos para os funcionários. Antigamente, ninguém ia nas assembleias dos sindicatos para acompanhar as reuniões com os empregadores. Da mesma forma, ninguém sabia o nome do diretor do sindicato. Mas todos tinham um dia de salário por ano retirado de maneira compulsória. O destino desse dinheiro não era conhecido. Agora, com a internet e o WhatsApp, a quantidade de empregados que segue atentamente essas assembleias é enorme. Os trabalhadores também perceberam que, quando o sindicato consegue alguma coisa, isso os beneficia. Muitas organizações começaram a cobrar uma contribuição voluntária para custear as despesas das negociações, e não há contestação alguma. A reforma trabalhista e a internet provocaram uma mudança tremenda nesse mundo. Aquele sindicato meio pelego se deu mal, mas os bons sindicatos estão sendo fortalecidos. Há uma reanimação da atividade sindical no Brasil.
O que ainda precisaria ser aprimorado na legislação trabalhista brasileira?
Uma coisa muito urgente é criar regras para quem trabalha por aplicativo. Esse trabalho está sendo desumano. Essas pessoas não têm direito algum. Acho que a sociedade brasileira não está aceitando ver esses motoqueiros andando como malucos pelas ruas para ganhar um dinheirinho, sem ter qualquer proteção. Se eles se arrebentam num poste, ninguém responde por eles. Também não contam com previdência social, nada. Só podem apelar para o Sistema Único de Saúde, o SUS. Isso precisa ser consertado com urgência.